O que definirá o futuro da Argentina?

Na reta final da campanha, cresce a mobilização contra a ameaça da ultradireita. Mas a persistência do apoio a Milei revela como é grave a crise da democracia. Será possível o pior? Como superar, depois do pleito, a reprimarização do país?

Foto: Campanha de Sergio Massa/Redes sociais
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Por Eduardo Giordano, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

Depois de terem falhado nas previsões para as eleições primárias, as sondagens de votos voltaram a errar nas previsões para o primeiro turno das eleições de 22 de outubro. Nenhuma das dez pesquisas de opinião foram capazes de prever a vitória por 6,7 pontos de diferença do candidato peronista sobre a força de oposição de extrema direita que parecia imbatível após a vitória nas eleições primárias (PASO) de 13 de agosto. Aqueles que anunciaram que o peronismo estava liquidado – incluindo os candidatos da oposição e o seu coro nos meios de comunicação social – tiveram de engolir as suas palavras uma por uma.

Os três candidatos mais bem cotados para vencer o primeiro turno localizavam-se em um espectro político que vai desde a centro-direita representada pelo peronista Sergio Massa dentro da Unión por la Patria (36,7%), a direita pura e simples do macrismo (Juntos pela Mudança) representada por Patricia Bullrich (23%) e a extrema direita ultraliberal de Javier Milei, La Libertad Avanza (LLA), com 30%. À esquerda, e com muito menos votos (2,7%), estava a candidata da Frente de Esquerda, Myriam Bregman, que ganhou destaque pelas suas respostas bem fundamentadas nos debates presidenciais, mas não capitalizou isso em número de votos.

Os candidatos que obtiveram mais de 90% dos votos apoiam uma matriz econômica tradicional de cunho agroexportador e extrativista, embora com ênfase diferenciada quanto à intervenção estatal com finalidade social, mais evidente no caso do peronista Sergio Massa. Os candidatos da oposição, de uma forma ou de outra, tem em comum o afã de privatizar e reduzir o Estado a uma estrutura funcional com os interesses do capital, desmantelando todas as formas de proteção social características do peronismo.

A primarização da economia com foco no agronegócio controlado por grandes multinacionais, a produção de energia utilizando técnicas de fracking para a obtenção de combustíveis fósseis (Vaca Muerta), e o impacto ambiental da extração de minerais como o ouro e o lítio, não foram temas de campanha, embora as questões ambientais preocupem profundamente a sociedade argentina, especialmente nas regiões mais afetadas pelo uso predatório dos recursos naturais.

A obra emblemática do governo Alberto Fernández é o gasoduto Néstor Kirchner, idealizados para transportar gás de Vaca Muerta ao norte do país, com o objetivo de prescindir a importação de gás da Bolívia. O governo alude à poupança de divisas que a sua implementação representa, cálculo que não tem em conta o custo humano e ecológico desta obra nos territórios sujeitos à poluição das águas causada pela fraturação hidráulica.

Massa afirmou em sua campanha que graças à conclusão do gasoduto Néstor Kirchner, a Argentina deixará de importar gás e petróleo no valor de 7 bilhões de dólares e passará a exportar a mesma quantidade em 2024, agregando valor à segunda maior reserva mundial de gás de xisto e à quarta reserva mundial de óleo de xisto de Vaca Muerta.

A exploração destes recursos é a principal forma de obter a desejada moeda estrangeira que o governo requer para sustentar o preço do peso e limitar a sua contínua desvalorização no mercado informal (aumento do preço do chamado dólar azul), um comportamento econômico intimamente ligado à espiral inflacionária. A subordinação da política econômica nacional às exigências do FMI não deixa muita margem de manobra para este impulso às exportações de hidrocarbonetos.

A grande diferença entre as propostas dos presidenciáveis é que Javier Milei propõe privatizar a petrolífera estatal YPF, empresa superavitária, e também vender o gigantesco campo de Vaca Muerta (30 mil quilômetros quadrados), sobre o qual as quatro províncias atravessa por este campo têm soberania: Neuquén, Rio Negro, La Pampa e Mendoza. O candidato a vice-presidente da União pela Pátria (UP), Agustín Rossi, rechaçou claramente ambas as possibilidades, denunciando essas intenções do LLA (de Milei) num debate com a candidata a vice-presidente desse partido, Victoria Villarruel.

Villarruel destaca-se pela sua firme defesa dos soldados genocidas da ditadura militar dos anos 1976-1983. Negacionista dos crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura, declarou num evento de campanha que os desaparecidos “não eram 30 mil”, cifra que não é questionada na Argentina há 40 anos. Se a sua candidatura prevalecer junto com a de Milei, este tendencioso revisionismo histórico levaria os argentinos de volta a velhas disputas de épocas já superadas após os julgamentos dos ditadores e o Relatório Nunca Mais.

O flanco mais fraco do peronismo é a política econômica do atual governo. Antes das eleições primárias, o ministro da Economia e candidato presidencial Sergio Massa foi forçado a desvalorizar o peso a pedido do FMI. Após uma desvalorização de 22%, o dólar paralelo atingiu 685 pesos no dia 15 de agosto. A vitória de Milei nas primárias e suas declarações incendiárias contra o peso fizeram com que o dólar paralelo subisse quase 50% em menos de dois meses, atingindo 1.000 pesos em 10 de outubro. A inflação atingiu 12,4% mensalmente em agosto e 12,7% em setembro, com taxa acumulada anual de 140%.

Apesar destes dados tão difíceis de digerir, Massa saiu vitorioso no primeiro turno eleitoral, subindo nove pontos percentuais em relação à sua posição nas primárias, enquanto Milei manteve inalterada sua percentagem de votos.

Sergio Massa recebeu apoio vital de campanha do governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, reeleito para o mesmo cargo com 45% dos votos. O ex-ministro da Economia kirchnerista representa um perfil de eleitores claramente situado na centro-esquerda e contribui com o voto popular de uma província que representa 37% da participação eleitoral nacional. Massa obteve sete pontos a mais na província de Buenos Aires que a média nacional.

A surpreendente ascensão de Milei

O resultado das eleições primárias conhecidas como PASO, em agosto deste ano, representou um terremoto político sem precedentes. Contra todas as probabilidades, o extremista ultraliberal Javier Milei foi o candidato com mais votos. Alguns anos antes, Milei sequer havia entrado oficialmente na política, era apenas um economista extravagante chamado para para programas televisivos por apresentadores que viam nele uma oportunidade de aumentar a audiência. A sua emergência política tem grandes semelhanças com a de Donald Trump nos Estados Unidos, tanto nas formas populistas características do extremismo de extrema direita, como no conteúdo ideológico conservador relativamente à família, à segurança e à liberdade individual.

Excêntrico, megalomaníaco, sua principal receita econômica é substituir o peso como moeda nacional pelo dólar estadunidense. Ao longo do caminho ele acabaria com o Banco Central, delegando o poder de fabricar moeda a outros atores financeiros do mercado: “O Banco Central não deveria existir, o próprio setor privado pode criar o seu dinheiro”, disse ele na apresentação de seu livro O Fim da Inflação (Planeta) na feira do livro deste ano. Neste mesmo evento, o seu conselheiro econômico de primeira linha, o não menos ultraliberal Alberto Benegas Lynch, vomitou perante o público que achava ridículo ouvir falar de soberania monetária, na sua opinião “uma gigantesca sandice”, equivalente à soberania da cenoura e do alface. A partir destas intervenções falaciosas, constrói-se um discurso tecnocrático onde o candidato “contra as casta políticas” e os seus principais assessores possuem um talismã messiânico que cativa os seus seguidores e confunde os menos informados.

Na política externa, os seus principais aliados seriam os Estados Unidos e Israel, ao mesmo tempo que dificultaria o comércio com os países “comunistas”, incluindo a China, o principal parceiro comercial do país. Ele também é a favor de dissolver o Mercosul, o ainda precário mercado comum sul-americano criado para promover o comércio regional.

Milei pretende desmantelar peça a peça os alicerces do Estado. E, em primeiro lugar, acabar com a igualdade de direitos à saúde e à educação, entre outros serviços públicos historicamente intocáveis. Que cada um pague por aquilo que consuma. Na sua opinião, tudo deveria passar para o setor privado, considerado o único gestor eficiente de recursos, cortando até mesmo o orçamento do Estado para as pesquisas científica. A sua intenção é “encolher” o Estado em 15% da sua dimensão total, aliviando assim a pressão da arrecadação de impostos sobre os setores de rendimento mais elevado. “Se há alguém que odeia impostos, sou eu”, declarou numa entrevista recente.

O ultraliberal Milei declarou-se admirador do governo de Carlos Menem, o presidente peronista que, nos anos 1990, impôs um modelo econômico neoliberal extremo, estabeleceu “relações carnais” com os Estados Unidos, privatizou as principais empresas públicas e pareou o preço do peso ao dólar – a conversibilidade de um por um de seu ministro Domingo Cavallo –, deixando como consequência dessa política uma profunda crise econômica que eclodiu em 2001, superada apenas anos depois, durante o governo de Néstor Kirchner (2003-2007).

Um estudo do CELAG indica que 70% das medidas do Plano Econômico de Milei são uma cópia fiel das que foram promovidas por Domingo Cavallo na década de 1990, que, segundo o próprio Javier Milei, foi “o melhor ministro da Economia da História”. Da mesma forma, o seu plano coincide 68% com o neoliberalismo de José Martínez de Hoz, o ministro da Economia da ditadura de Rafael Videla, célebre por ter endividado o país além de qualquer limite razoável.

Nas eleições primárias de agosto, Milei ganhou grande parte dos votos nas áreas urbanas de baixa renda. La Libertad Avanza obteve seus melhores resultados na zona sul da cidade de Buenos Aires, nos bairros populares de La Boca, Barracas, Parque Avellaneda, Villa Lugano e Villa 21, todos de tradição peronista, em grande parte devido à abstenção de muitos eleitores insatisfeitos com a situação do país. Também nos municípios suburbanos mais empobrecidos e em outras grandes cidades como Córdoba e Rosário. Além disso, o partido de extrema direita La Libertad Avanza venceu em 17 das 24 províncias argentinas.

Este desconcertante apoio dos setores populares a Javier Milei é uma clara expressão de rejeição às políticas econômicas ineficientes do governo peronista de Alberto Fernández. A verborragia incendiária do candidato ultraliberal levou-o a declarar na televisão o seu desejo de “que a economia exploda”, desejo partilhado com a candidata de direita da casta, Patricia Bullrich (“espero que a Argentina exploda antes do dia 19”, data das eleições), com quem Milei acabaria se aliando para disputar o segundo turno. Diante desses discursos ameaçadores sobre o futuro do país, Massa se propôs a manter a calma da população, proporcionando uma imagem de equilíbrio e moderação diante dos contínuos arroubos de seus adversários.

O último episódio de crise monetária ocorreu nos dias 9 e 10 de outubro, quando Milei fez declarações explosivas que desencadearam uma nova corrida aos bancos, levando o dólar paralelo a 1.000 pesos, quase o triplo do seu valor ao câmbio oficial (367 pesos). O candidato de extrema direita disse: “O peso é a moeda emitida pelo político argentino, portanto, não pode valer nada, porque esse lixo não serve nem para fertilizante”, ao mesmo tempo que desencorajava a renovação de prazos fixos na moeda nacional.

Neste contexto econômico louco, Massa tem-se dividido diariamente entre o exercício do seu cargo de ministro da Economia e o seu papel como candidato presidencial, o que não o deixa numa posição vantajosa na competição eleitoral. Tanto o presidente Alberto Fernández como a vice-presidente Cristina Kirchner mantêm-se à margem da campanha, com poucas intervenções públicas durante os últimos meses do seu governo, amplamente caracterizado por uma gestão errática e deficiente, com poucos resultados tangíveis.

Retorno peronista e o segundo turno

As eleições realizadas no primeiro turno em 22 de outubro de 2023 dissiparam em grande parte os receios que surgiram após as primárias. Sergio Massa superou todas as expectativas e ficou em primeiro lugar para disputar o segundo turno, no dia 19 de novembro. O receio de que a extrema direita varresse os outros candidatos no primeiro turno foi, então, dissipado. Mais de dois milhões de pessoas que não o tinham feito antes votaram, depois de uma intensa campanha nos subúrbios de Buenos Aires e outras áreas tradicionalmente peronistas, e a coligação governamental recuperou várias províncias que tinham ido para Milei nas primárias.

Ao mesmo tempo, a direita conservadora do Juntos Pela Mudança ficou de fora do cenário eleitoral, com a sua candidata Patricia Bullrich que ficou em terceiro lugar, a uma distância considerável do candidato da ultradireita. Os votos anti-kirchneristas que o macrismo capitalizou nas eleições anteriores foram repartidos entre os dois. Os dois candidatos da direita antiperonista, Milei e Bullrich, concentraram os seus esforços de propaganda no ataque ao governo e apenas ocasionalmente adotaram posições críticas um em relação ao outro.

Dias depois de perder no primeiro turno, a candidata do JxC, Patricia Bullrich, assim como o chefe de seu partido, o ex-presidente Mauricio Macri, anunciaram seu apoio ao candidato de direita mais votado, Javier Milei, destacando que adotaram esta decisão devido ao seu anti-kirchnerismo, para além das suas coincidências ou discrepâncias programáticas.

No entanto, tanto no LLA como no JxC, surgiram divergências com as respectivas lideranças partidárias sobre o acordo assinado entre os líderes de ambas as forças. Por um lado, figuras-chave do partido de Milei desertaram abertamente para o lado de Massa devido a submissão a Macri; e, por outro lado, os líderes históricos do Partido Radical opuseram-se abertamente ao perigo para a democracia que o ultradireitista representa.

Uma ampla frente contra Milei surgiu de vários setores sociais que temem uma redução dos direitos individuais e coletivos num possível governo de extrema direita. Nos últimos dias de outubro e primeiros dias de novembro foram divulgados diversos manifestos de escritores, intelectuais e artistas contra o voto em Milei. Por exemplo, numa declaração intitulada “40 anos após a recuperação da democracia e em defesa das instituições”, mais de 3.000 escritores, intelectuais e artistas argentinos e estrangeiros expressaram a sua “preocupação com o futuro da democracia argentina” e apelaram ao voto em Sergio Massa “neste momento crucial para o país ”. E quase simultaneamente, outro grande grupo de pesquisadores, pensadores e escritores também se manifestou no mesmo sentido. Num comunicado admitem o seu desacordo com “a trajetória de Massa, os erros da sua gestão econômica e a ambiguidade das suas propostas podem gerar sérias dúvidas e receios”, embora considerem necessário “estabelecer um cordão democrático contra os perigos de uma deriva autoritária encarnada por Milei”.

Da mesma forma, em 5 de novembro, foi publicado um manifesto intitulado “Não vote em Milei: vamos barrar a extrema direita ”, assinado por intelectuais e economistas de esquerda extremamente críticos da política econômica de Massa: “Aqueles de nós que subscreveram esta declaração têm denunciado e enfrentado todas e cada uma das medidas antipopulares deste governo, bem como o pagamento da dívida e o acordo com o FMI, e temos lutado nas ruas contra estas políticas”. No entanto, os signatários rejeitam a ideia do voto em branco porque se tornou um refúgio para a direita insatisfeita com os pactos entre ambas as forças, e concluem que a prioridade atual não é outra senão deter a extrema direita.

Outros amplos setores sociais, desde o movimento feminista até setores da Igreja, fizeram campanha contra os cortes de direitos anunciados pelo candidato da extrema direita.

Desta forma, mais do que a alternância de governo entre dois partidos, o que se decide neste segundo turno eleitoral é a aceitação ou rejeição de um modelo de país democrático, baseado na base social do conhecimento e dos direitos humanos, ou muito autoritário, apoiado por a imposição de ideias mágicas e a repressão da dissidência. Este é o grande desafio que a Argentina enfrenta nestas cruciais eleições.

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